terça-feira, 15 de junho de 2010

O Ovo da Serpente


Em preto e branco, num plano fechado, pessoas andam pela rua em câmera lenta, na direção da filmadora. Essa é a cena de início de “O Ovo da Serpente”, um dos filmes em que Ingmar Bergman disse ter fracassado. Logo no começo, nos é apresentado o contexto da Alemanha pós Primeira Guerra Mundial: pobre, com uma inflação exorbitante e seus habitantes tristes e desiludidos. O americano Abel Rosenberg chega em casa e descobre que seu irmão suicidara-se. A causa era desconhecida. Ambos haviam se mudado para Berlim juntamente com Manuela para acompanhar um circo, no qual trabalhavam. No interrogatório, a pergunta chave: “Você é judeu?” Sim, Abel o é. Na carta deixada por Max (o homem que morrera) distingue-se apenas a frase: “Está havendo envenenamento”. De fato, várias outras mortes misteriosas vinham ocorrendo.

O filme tem um clima tenso, delineado pelos crimes cometidos por judeus e pelo governo passivo. Devido às dificuldades financeiras, Manuela e Abel moram com uma velha que é a primeira representação de um estado nazista, uma espécie de carrasco. “Você esteve chorando?” Ela pergunta. A casa ampla, com vários penduricalhos e tralhas antigas, nos remete ao filme “O Silêncio”.

A crise de Abel se dá quando ele percebe que a discriminação racial havia começado. Ele, por ser judeu, estava em desvantagem.

A ingênua Manuela, cada vez mais esquisita, provavelmente doente, procura o perdão da igreja. Sua sanidade começa a se abalar. A pergunta ao padre: “Ajudaria?” recebe a resposta: “Não sei”, que resulta na tentativa do eclesiástico de apelar ao perdão mútuo. Eles se perdoam, ela pela morte do marido, ele pela indiferença com relação a tudo.

Nessa altura, temos a primeira evidência concreta de que um período discriminatório estava por vir. Alemães invadem um cabaré e quebram o nariz do judeu anfitrião. O caos reina, cada vez mais. O barulho de uma máquina, simbolizando todo o sofrimento, enlouquece os sãos. Os corrompidos pelos mistérios já não a escutam mais. A fome e a dificuldade financeira são mostradas quando uma mulher estende as mãos para oferecer a carne crua de um cavalo morto. A cena da incapacidade sexual do negro perante uma prostituta é também a impotência da biodiversidade, da variabilidade étnica.

Manuela morre em nome do ‘Mistério’ no tempo em que o protagonista descobre que estava sendo espionado na própria casa. Após uma seqüência tensa, Abel chega no subsolo da clínica Santa Anna, onde encontra Hans Vergerus, um velho amigo de infância que, quando criança, abria o peito de gatos vivos para ver seus corações baterem. Ele explica todo seu complexo plano. O fim justifica o meio. O fim? Melhorar a espécie humana. O meio? Fazer experimentos com homens vivos.

Uma mulher é colocada com um bebê que, devido à lesão cerebral, não pára de chorar. Ela o sufoca depois de algumas horas. Um homem fica imóvel, num ambiente escuro e sem nenhum som durante sete dias. Quando é libertado, está apático, incapaz de andar e, até mesmo, sem reflexos. Um rapaz recebe uma injeção contendo uma toxina que provoca uma terrível angústia. A cena é desconcertante. Mesmo depois de passado o efeito, o jovem se suicida (Rosenberg descobre que seu irmão foi vítima da mesma experiência). Um casal é exposto a um gás que desvia o ser humano de seu comportamento racional. Eles passam a ser movidos por impulsos instintivos. Hora se batem, hora se amam. Enlouquecem. O mais assombroso é que todos os “objetos de estudo” eram voluntários. Num tempo de insegurança econômica, as pessoas estão dispostas a muita coisa por dinheiro.

Hans está disposto a fazer tudo pela ciência. Acredita piamente que suas descobertas serão úteis anos à frente. Ele se refere a Hitler como um cabeça-de-vento (mesmo tendo este um suicídio idêntico ao seu) e prevê seu fracasso inicial. Realmente, o futuro ditador não teria como derrubar, naquela época, a “força da democracia alemã”.

Ao final, voltam as imagens do início. Pessoas fatigadas e humilhadas andam pelas ruas. Nesse estado, elas não seriam capazes de apoiar uma revolução. Mas dez anos depois, no começo do nazismo, quem antes era jovem se tornara adulto e herdara dos pais o mesmo cansaço e humilhação, porém acrescidos de impaciência e idealismo que criarão uma defesa liderada por um dos mais famosos ditadores de todos os tempos. Os experimentos de Hans seriam úteis nesse sentido, pois tem a pretensão de melhorar o homem. Estimulam a discriminação racial e têm o fim de padronizar o ser humano. Eles compõem o “ovo da serpente”. A semente do Holocausto. Um ovo no qual, por detrás da fina membrana externa, já se pode “distinguir perfeitamente o réptil já formado”.


Felipe de Oliveira
2010

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